quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A pergunta filosófica





Sócrates também perguntou, ...ironicamente.



O filósofo mais afortunado, dizem, é aquele que sai de casa logo de manhã, depois de ter tomado seu café, portando, embaixo do braço, uma valise. E no interior de sua valise, uma nova pergunta. 


Vamos supor que esta nova pergunta de nosso personagem filósofo seja de fato nova, e que seja a seguinte:  
                             
  "O que é o tempo?"



Filósofos assim afortunados acordam cedo pois se dirigem ao campus para dar aula. A aula de hoje certamente será especial, e no caminho, se depara com um pequeno moleque oferecendo engraxar seus sapatos. 


- Vai a graxa?

- Desculpe-me, mas como pode ver não estou calçando sapatos, mas sim tênis.

- Sim, eu já sabia. Falo de sua pasta.

- Minha valise? Não me parece apropriado nem convencional...

- Já viu uma pasta engraxada como fica?

- Colocado desta maneira, não posso negar que nunca vi ou ouvi falar de tal coisa.

- Então, tá na hora, é cinco minutinhos para a pasta.

- Não se afobe, ainda tenho restrições a esta idéia, higiênicas por sinal. Estes seus materiais de trabalho estão embebidos de sapatos de vários tipos e qualidades, e sabemos que são eles, os acessórios mais suscetíveis a desgaste e degradação, estão juntos ao chão.

- Eu já sabia disso. Mas no valor da graxa para a pasta fica incluído o valor do pano especial, que compro ali no mercado, e por isto que o pagamento é adiantado.

- Ora, estou caindo na realidade aqui, você menino é um verdadeiro falacioso, um retórico de mão cheia, estou quase me convertendo e o que se passa é que nem ao menos sei se podemos dizer se isto é de fato engraxar. Você menino (em ardor socrático) ao menos poderia me dizer o que é engraxar?

- Se eu quiser responder não vou conseguir porque não tenho livros como o senhor, mas se mesmo assim tentar, vou acabar deixando de engraxar que é o meu ganha-pão. E ainda, se eu conseguir a resposta, nunca saberemos como é isto, de ver uma pasta engraxada. O senhor não tá curioso não?


Seguir com a diferenciação precisa do garoto, entre 'ser' e 'poder ser', ou, mais significativo ainda, entre a superioridade epistemológica do contingente sobre o universal, parece implicar uma caminhada bastante tortuosa para o filósofo, se quiser adentrar com sua lauda grafada em tinta, com sua pergunta ainda íntegra, à sala de aula.

Segue-se uma grande aventura nesse intervalo, pensa:

Tendo em mãos uma pergunta como 'o que é o tempo?', depois da conversa com este menino, não seria o caso de vir a me perguntar: 'o que pode ser o tempo?' 

Mas ora, que pergunta invulgar, aquilo que pode ser o tempo já esta determinado pelo conceito, e se eu responder apropriadamente a pergunta consigo ainda deduzir tudo o que venha ser o tempo. 

Mas o ego já fora ferido. 

Estando ainda no primeiro quarto do caminho, e hoje, em seu primeiro impulso exploratório e laboratorial em filosofia, entra em uma loja de departamento, e lança-se perguntando às pessoas, 'o que pode ser o tempo?'.


- O tempo pode ser uma maneira de organizar sua vida.

- O tempo pode ser o que move o mecanismo do relógio.

- O tempo pode ser uma dimensão do mundo. 

- O tempo pode ser manipulado para frente e para trás.

- O tempo pode ser um pulso em nosso cérebro que coordena nossa percepção.

- O tempo pode ser apenas o movimento das coisas.

- O tempo pode se dividir em infinitos tempos. 

- O tempo pode ser representado em um quadro.

- O tempo pode ser uma invenção humana.

- O tempo pode ser o leito de deus enquanto ainda dorme. O 'nada', sua cama refeita.


Mas então, perguntando não o que são as coisas, mas o que elas podem ser, percebemos que a cada nova resposta à questão 'o que pode ser o tempo?' vamos tomando contato com experiências que nos revelam uma realidade sobre o tempo que não seria possível conceber como contida em sua pergunta original, pois que já nos interrogávamos sobre um tempo ao qual concebíamos a partir de certas experiência e não outras. 

As respostas seriam a verdadeira condição de compreensão de um tempo que ainda não estou habituado. A experiência me mostraria novas habilidades e modos de imputar tempo às coisas. Não é mais a pergunta filosófica que nos faz conhecer, são as respostas, pois as respostas expandem e chamam os conceitos inscritos a lápis para passear. Perguntar-se seriamente 'o que é o tempo?', seria deixar de admitir que ainda não se conhece o suficiente sobre o tempo das coisas e inscrito tão somente nas coisas. Fazer seriamente algo sobre o tempo é dar-lhe uma resposta.


Acontece ainda que o que 'pode ser' não é uma perspectiva originariamente filosófica, ela está muito mais próxima do moleque que faz gambiarras e lhe vende. E assim como sua esperteza, são produtos recém criados e circunstanciais. O horizonte do 'poder ser' está incomensuravelmente fora do ponto de vista da pergunta inscrita numa lauda de papel - esta última imutável, equanto a outra inventiva. 

O filósofo vai ter que se decidir até o final do caminho se saca ou não de sua valise, se repousa ou não repousa a lauda em cima da mesa, e se transcreve ou não ao quadro negro sua pergunta filosófica. 

Mas, diante do exposto, se o fizer, só poderá fazer em nome dos tempos vindouros. 

Tudo leva a crer que a pergunta filosófica foi reservada para o fim dos tempos - ainda um outro conceito de tempo - aquele de uma utopia eleita, e por isto um horizonte de humanidade que seria o mais propício para esta atividade filosófica, para as perguntas que pedem menos respostas e mais contemplação, que miram apenas para o olho do problema e de lá o fitam, antes que o olhem de volta. 

Mas, imaginemos este mundo, um mundo sem urgência, onde nos dedicaríamos exclusivamente às perguntas filosóficas. Que perguntas faríamos, e mesmo, o que ainda fariam perguntas em nosso mundo? Largaríamos toda a prevenção de Odisseu, nos atiraríamos às sereias? 

A pergunta errada é a única que pode permanecer eterna: