segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Título



O Zé amontoava títulos, os criava antecipadamente. Quando enfim procurava-os em seu catálogo, dificilmente serviam. 

Sérgio uma vez disse que uma capa de disco, um título, mudavam toda a percepção de uma obra. Eu continuei escutando as músicas, com ou sem o título, com ou sem a capa. Nada mudou.


Títulos não são Nomes, explico:


Missa em B menor não é um título, é um nome. 
Sonata não é um título, é um nome.
Metafísica não é um título, é um nome.

Um nome é um código que indica alguma coisa, sem lhe acrescentar algum sentido. Existem nomes brincalhões, contendo alguns caracteres da coisa. A exceção aqui não passa de via de regra.

O título intenciona. Faz reter sob uma esfera primordial  uma energia de conceito, alastrando-se a todas as esferas da obra que se seguirá.  


Nos livros os títulos informam, porém, sem ser capaz de ilustrar. A imagem aqui é a de um foco de luz que condicioina nossa disposição em uma única direção, como no efeito fotoelétrico, ou bem verificamos sua forma ou o conteúdo do que se titula. 

Mas a união não é de todo impossível. 

Quando lemos em um título: "Ensaio acerca do entendimento humano" sabemos o que esperar, em termos de conteúdo e forma, não em virtude própria das palavras, o sentido geral é dado relacionalmente por outras obras com o mesmo título. 

É assim que uma única partícula tão peculiar detém tão poderoso efeito:

.  'Da' origem dos animais
.  'Do' sono e a vigilia
.  'Da' alma 
.  'De docta ignorantia
.  'De' la causa principio e uno
.  'Das' revoluções das esferas celestes


Os títulos compartilham de uma história e tradição, e depois de copérnico, dificilmente veríamos novamente estes artigos definidos no genitivo.

Autores querem dar títulos, e se comunicar a partir deles. Até que os títulos se comunicam entre si. Antes dos Títulos, na música vieram os apelidos: Júpiter, Pastoral.

Chopin repreendia os editores ao dar 'títulos' a suas peças. Ele sabia exatamente o que fazia diante do romantismo.

Ao passarem a escolher Nomes ao invés de Títulos, compositores adicionavam mais força aos jogos de leitura das peças instrumentais.

. Syrinx
. Ionisation


O título se prolonga e intenta abarcar atmosferas científicas, mitológicas, poéticas. Os títulos começam a se referir metalinguisticamente ao procedimento das obras a que se referem. Uma volta ao paradigma livresco:

. Partiels
. Atmospheres
. Continuum for cembalo


Títulos e analogias autorizaveis, como em Hanslick, a descrever fenômenos sonoros e musicais.

                             
Entender títulos não é tanto entender a relação deles com suas respectivas obras, mas sim compreender o que se quer com títulos. É um jogo tão mais sutil quanto mais se compreende sua serialização, pois para se entender o que se quer com títulos temos que entender também o que seja a obra. 

Tradicionalmente, entender o que seja a obra é a porta de entrada para se entender o jogo implicito ao título. Pelo menos, este é o jogo tradicional com os títulos. Mas estando o jogo em aberto lança-se sempre imprevisivelmente sua função e mostra-se algo como uma arte de titulações, titubeios e enfim títulos.




sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A melhor obra de Andy Wahrol

Me perguntei qual seria a melhor obra de Andy Wahrol.


Os vídeos decididamente não são interessantes, os objetos cotidianos que ele dipõe tão menos, as reproduções de fotos repetidas sob cores variadas, de personalidades, não interessam igualmente. Há alguns objetos e temas de design, uma pequena escultura de uma mulher fazendo compras... coisas de estudante e não obras com o maiúsculo.

Poderia ser dito que o interessante de suas obras estavam em sua exibição nas galerias. Não creio nesta hipótese, desde o início do século XX nos habituamos a não nos chocarmos com este tipo de coisa. Não haveria tanto mais o que dessacralizar.

Definitivamente as melhores obras seriam então aquelas em conjunto com Basquiat, justamente estas que por ação de um artista faz ser impossível localizar o que há de Wahrol nelas...

…nossa busca continua.


Depois de muito procurar concluí que o melhor é admitir que suas obras são muito ruins mesmo, e não há o que se fazer sobre isto. E como todas são igualmente ruins, se torna uma tarefa vã procurar sua melhor obra, quanto menos uma melhor obra de arte.

Mas, se admitirmos que não são objetos artísticos o que Andy Wahrol produziu de interessante, ganhamos uma porta de acesso, e no mesmo lugar, uma interrogação: o que afinal faz o nome de Wahrol em meio ao senso-comum estético?

Talvez a formação e profissão de Andy possam explicar isto. Ele era um designer.

Sua produção neste ramo é abundante, e atravessa o vídeo, a pintura e a gravura, dentre outras técnicas. E como todo objeto de design, seus objetos não são interessantes, são no mais harmônicos. Tendo em vista uma gradação do design que se move entre a indiferença até o curioso, mas nunca interessante.

De novo este problema, os objetos são desinteressantes e não-prenhe. Mas no começo dos anos 50 lhe renderam uma exposição. E por toda sua carreira (observem suas capas de revista, sobretudo da Vogue) não fez mais do que produzir capas, publicidade e coisas que já fazia habitualmente, independente do meio ao qual se vinculava.

Em que consiste sua melhor obra?

Consiste em não ter nenhuma obra. Tratar-se-ia então de uma façanha.

A façanha consiste em ser o primeiro designer a desvincular seu trabalho de um produto. Ora, designers vendem seu trabalho para que empresas possam vender melhor seu produto. Quando o designer vende seu trabalho está vendendo um meio que será utilizado.

Wahrol conseguiu o inimaginável, transformou a publicidade, a etiqueta e o logotipo em produto, ele foi capaz de vendê-lo sem que precisasse se atrelar a um produto, e se tornou o primeiro designer autônomo, ou o primeiro designer a se despregar do sentido do trabalho, ou apenas um dos maiores vendedores do mundo.

A desvinculação de seu trabalho, tradicionalmente tido como um meio, passando a obter um fim em si mesmo, acaba naturalmente se esbarrando com outro mundo de criação, e como não poderia deixar de ser, com o que existia de mais próximo de um produto sem ‘função’, um produto sem um 'porque'; este era tradicionalmente reconhecido como arte. Mas nos anos 50 e 60 tal definição de arte já pareceria decadente e 'démodé' o suficiente para que pudéssemos identificá-los assim de imediato.

Mas vejam, diante de um trabalho de design, sem grandes qualidades esteticas, e sem nenhum produto a suportá-lo, o que faria vendável tal produto? A arte. Como suporte de publicidade para este 'anúncio em abstrato'. Se a arte alçou a abstração como uma demanda de liberdade, o design se viu surpreendentemente diante de uma mesma conquista.

Nesta medida o termo 'Pop-arte' parece muito justo. Não se trata de qualquer relação a um passado da arte, antes, trata de um passado da própria producão visual de uma economia, e de uma relação presente no mundo Pop, o fato dele se reproduzir. Seja em rótulos, em produtos que se vendem por qualquer motivo, qualquer figura que cole, que decole.

É sem dúvida mérito de Wahrol encontrar a substância da reprodução, a substância Pop. Seu espelho, na medida em que reflete as figuras famosas, os meios badalados, espelha não mais os personagens, mas esta substância, justamente porque subrepticiamente não encontramos nestes objetos absolutamente nada, nenhum interesse, apenas uma abstração no real sentido da palavra, retirada do sentido que um objeto é capaz de emanar.

Tal recurso visa entrar em um outro maior, a da abstenção, em prol de uma contemplação cíclica que parte do que parece importante (personalidades, marcas, eventos) na medida em que se encontram na televisão ou no 'mundo da arte', e chega ao culto desta imagem, justificando sua aparição na televisão e no mundo da arte. Tal capacidade de retirar o objeto do campo da experiência e sobre ele ativar uma série de comportamentos e sentimentos sociais é algum mérito, porém a técnica é da publicidade. A abstenção é sem dúvida a abstenção de diversas relações do mundo.

Então, qual a melhor obra de Andy Wharol?


A melhor obra de Andy Wahrol é sem dúvida seus fãs, que mantém o ciclo fechado. Andy Wahrol é um ídolo porque tem fãs, e tem fãs porque é um ídolo, e isto nada tem a ver com suas obras, mas com sua façanha empreendedora, de conhecer um mercado e não criar tensão entre uma rede de mercados.

Porém, ninguém neste mundo é tão ruim a ponto de seu trabalho não poder ser elogiado. Seria possível, humanamente possível, que algum profissional, ao menos por um dia, ou por quinze minutos, não produzisse algo de minimamente interessante?

Somos muito otimistas a este respeito. Aqui vai uma obra interessante de Wahrol, mas que porém, nunca ví nada parecido em qualquer outro trabalho seu. Aqui (sic) o fato de ser coca-cola não soma nem subtrai, fazemos outro tipo de abstração e abstenção:


http://gabbiadorata.files.wordpress.com/2011/03/andy-warhol-bottles-of-coke.jpg

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A palavra 'arte'




A palavra arte descende imediatamente do latim, ‘ars’.

A palavra ars descende, através de tradução do grego: téchne

A palavra téchne significa: habilidade, astúcia no fazer, técnica.


A palavra ars não pode significar "arte" como a entendemos hoje, coisa que a expressão ars mechanica já fazia sublinhar. Ars significa técnica, assim como a entendemos hoje.


[Medicina, engenharia, arquitetura]

(arte = téchne) Saber como fazer.



A não coincidência, para nós, dos termos técnica e arte, se deve em grande parte ao exame da obra Aristotélica, e a uma pequena confusão com o latim.


Aristóteles empreende uma obra a respeito da arte poética, ou em seu origina: poiêtikê technê. Esta se constitui como uma exposição da téchne (saber fazer) da poiesis, sendo o sujeito a poética e não a técnica. Esta ordem é decisiva. Se Aristóteles tivesse tratado os gêneros ‘imitativos’ enquanto episódios de uma téchne, e não de uma poiesis, arte, ars e techné, a poiesis seria mais facilmente considerada um derivado desses.


O termo latino ars tem hoje o seu representante na técnica e na tecno-ciência. O termo ao qual nosso uso da palavra "arte" parece corresponder aos dias atuais, portanto, só pode ser poiesis. Nisso o romantismo parecia insistentemente correto, artistas fazem poesia.


A palavra poesia descende imediatamente do grego, poien/poiesis.

A palavra poiesis significa: realização, criação, poesia (poética).

A palavra poiesis englobava uma série de atividades, em geral voltadas ao manuseio.


[Artesão, escultor, pintor, ceramista]

(arte = poiesis)  Fazer surgir.



A palavra grega mousa significa: música, poema.

Mousa significa hoje uma conjunção de atividades a que atualmente só possuímos o correspondente da ‘canção.’

As musas se confundem em suas habilidades, são todas musicistas e poetisas, ou dançarinas. Temos um panteão com três atividades, que são hoje três atividades "musicais" que reconhecemos hoje como artísticas apenas em sentido geral. Faz parte da arte as belas artes da pintura e escultura, também o teatro. Aqueles que um dia glorificaram a vitória de Zeus foram excluídos e de músicos se transformaram também em poetas e dançarinos.


[Rapsodos, bardos, seresteiros, ditirambo, atores, dançarinos, instrumentistas]

(arte = musa) O surgido, inspirado e de tudo refletido.




O que podemos concluir é que não será a partir da grécia, da pré-história, ou de qualquer outro lugar que iremos conseguir significar o que hoje fazemos e nomeamos enquanto arte. 

As artes, individualmente, possuem origens diversas, raízes que muitas vezes não se comunicam. A comunicação entre elas pode ser estimulada ou evitada, como no conceito de 'belas artes'.

As letras também deixam de ser arte

O romantismo encarnou em si a crise da definição. Sua reação foi retomar a poesia/poética como impulso metafísico primordial e unificador absoluto. Impulso unificador típico do ocidente cristão por um lado, tentativa de valorização filosófica e racional da criação e da liberdade individual por outro. Mas a cristandade romântica com o ideal de valorização da moral a partir do espiritual fez da hierarquia o lugar comum da poesia. Porém, no auge do momento de unificação um momento de atomização imprevisto rouba a cena: a autonomia. Retornamos ao começo, e a origem das artes, como nosso exame grego demonstrou, pouco tem em comum umas com as outras.


Assim se daria também com o andróide, idêntico ao humano em vários sentidos, mas em um sentido muito diverso.

Temos que encarar o fato de que Leonardo da Vinci não fazia arte, mas outra coisa que não era para nossos olhos. A história da arte cuida desses assuntos, de o que chamamos de arte ter no máximo 250 anos.

Mas nos interessamos em cuidar ainda de outro problema. Do fato de nenhuma arte ter qualquer relação com outra arte, em sentido atômico agora, de um grego chamado Demócrito desta vez.

Certa indefinição grega das atividades artísticas era bem vinda porque interessava certo mistério ali no tecido social.

A autonomia vem em sentido contrário. Ela busca distinções com um espírito muito próximo da acuidade científica, conscientes e claras a ponto de extrairmos dela seu máximo sentido, alopaticamente. 

Monta-se assim uma taxionomia própria de cada arte, uma história particular, ramificada, que se encontra no presente com outra diversidade de espécies.  

Enquanto houver um fio condutor que trace a envergadura de uma arte específica desde uma antiguidade qualquer até o presente, haverá ainda uma e mesma palavra a lhe identificar. Mas não deixemos que a mesma palavra iluda.

Tal rito de linguagem, de fixação de termos, sempre pede um sacrifício. Sacrifiquemos então. Diremos agora da música, escultura, teatro, etc., em troca sacrificamos o termo ‘arte’.

Falemos de música, poesia, cinema. E não tratei de nada a não ser de um elogio a Eduard Hanslick ou talves Diderot.

domingo, 24 de julho de 2011

Espaço-Idéia


Não há a coisa da ciência. Há métodos concretos. Objetos são produtos de métodos. Métodos são concretos, e a filosofia não possui objeto, não é um método. Busco com isso anular o que seja filosofia em sua auto-imputação metódica e consciente. 

A pergunta que precisamos manejar é: "a filosofia faria algum sentido, teria algum papel a desenvolver em uma ciência não ficcional?"

O professor Ricardo Fenati certa vez disse: “a filosofia é um conhecimento não-disciplinar.” Acrescentamos, parece tender à indisciplina.

É certo que a filosofia se depara com métodos, mas para isso, os métodos devem existir por si só. O exame do método, o método de se deparar com métodos, legar a explicação a um jogo de palavras seria dar voz ao ficcional. A filosofia se depara com métodos ao modo de um encontro, como em um espaço percorrível no pensamento, e por ele parece que a filosofia caminha, mas apenas isso, caminha e encontra.

A primeira lição de uma ciência não ficcional é entender como os métodos e a possibilidade de métodos podem ser encontrados neste percurso espacial que a filosofia percorre. E nisto Alan Moore pode nos ajudar.

Não imaginava que o roteirista dos meus quadrinhos preferidos algum dia cunharia um conceito tão importante. De repente Alan Moore tem uma ferramenta preciosa para compreender a tarefa da filosofia.

Pegamos emprestado aqui seu conceito de espaço-ideia. Espaço-ideias são, de um ponto de vista neuro-transcendental, aquilo que Husserl nomeava de eidos, estruturas identitárias que se manifestam como idéias, percepções, esquemas corporais e toda a série de  hablidades que possamos vir a ter. A novidade de A. Moore estaria em descrever essas estruturas como ao mesmo tempo naturalizadas e como que dispostas em um espaço mental. Estes espaços ou localizações mentais formariam núcleos, eidos, formações. Estes lugares específicos nos permitem organizar, pensar e perceber a realidade.

Uma vez que uma região se organizou em uma espaço-idéia, então somos capazes de pensar, perceber, organizar e criar a partir de seu ponto de vista. A estrutura espacial não se encadeia de um modo verticalizado, a espaço-idéia corresponde a apenas uma região específica, onde uma teia de horizontalidades se constitui. A trama real de um funcionamento neuro-transcendental é tal que, diversas espaço-idéias são constituídas ao mesmo tempo. E em um primeiro momento nenhum conflito se faz presente, afinal, podemos observar um módulo lunar com os olhos de um físico, de um engenheiro, de um poeta, de um indiferente, e provavelmente para Neil Armstrong esta observação contava com configurações que provavelmente poucos compartilharam.

Internamente podemos entender o mundo com chaves simultaneamente diversas, divergentes e contraditórias, sem que isto cause alguma censura moral ou lógica no interpretante. Tentar levar exigências lógicas estritas como a não-contradição a todo o campo espaço-ideal significa a influência de espaços-idéias entre si, tema que não adentramos ainda.

A espaço-idéia, no modo como interpretamos aqui é um conceito que nos obriga a deixar de lado certas exigências e missões herdadas como a tarefa do pensamento:

A primeira é que o pensamento não é sinônimo de filosofar, por isso há diversas tarefas para o pensamento. 

O pensamento é um ato, assim mesmo como Kant diz do ato de julgar, inclui-se, que opera uma espaço-idéia, seja num juízo seja em um gesto. Operam-se módulos (relações e configurações de lugares precisos de espaço-ideias). 

A segunda, que filosofia é um caminhar entre e-ideias e módulos. Ela não é capaz de forjar ou fazer interagir. A filosofia apenas anda, e possui técnicas de caminhar, esta seria sua verdadeira tarefa. 

Em um outro sentido, a filosofia pode apresentar os módulos que encontrou em sua caminhada, e em último lugar, somos obrigados a reconhecer que não existe ciência, método ou técnica para a criação de módulos. Apenas sabemos que eles são formados, e que, ao que tudo indica, podem sofrer transformação, se multiplicar e surgir novos, mas, criar, moldar e fazer surgir, estas tarefas estão dispensadas de nossa ação consciente e seria um ato de hipocrisia a filosofia arrogar-se desta tarefa. 

Mais determinante de tudo é a tarefa da audição, mais do que a filosofia, mais do que a técnica, maior do que todo o método concreto.

Uma ciência não ficcional é o trabalho árduo a partir de um módulo. E tudo indica que trabalhos árduos fazem andar esta coisa dos módulos, e por eles a filosofia. Porém, longe de criar clareiras, nossas teias se adensam e adentramos mais, e enfim descobrimos novos módulos. E o mais importante, novos módulos nos mostram novos objetos, sim, os módulos são um método para novos objetos.

É muito estranho que haja uma disciplina isolada como a filosofia. E muito estranho que as demais disciplinas não tomem o material filosófico como próprio. Qualquer conteúdo produzido só pode ser produzido a partir de um módulo, portanto, quando um filósofo não nos diz de uma técnica de percorrer espaço-idéias, ou não nos conta de um novo módulo, está em realidade a fazer ciência ficcional.  

Mas se faz seu trabalho, o produto final se dirige a uma disciplina específica e não a algo isolado como a filosofia. Digo isolado porque ela não deve possuir uma biblioteca de conteúdos, mas sim de técnicas e descobertas.

Parece que fazer andar a filosofia tem a ver com a recusa de um motor gerado pela ciência não-ficcional, passando a um trabalho árduo de um módulo.

Não há dúvida que trabalhamos com um paradigma de novidade, ao contrário da teoria científica ficcional que pensa e toma como tarefa compreender o mundo e esgotá-lo. A ciência não ficcional quando apresenta um movimento é um movimento voltado ao novo, nunca direcionado para a justificativa, o sistema, ou o acabamento, são Entradas e Bandeiras, violentas e aventureiras.

Não podemos mais imaginar uma ciência diferente dessa seria não levar a vida e a realidade a sério, mas tão somente a desperdiçar.

domingo, 10 de julho de 2011

O Ficcional


Ad terrorem, por uma deriva, a ciência, a filosofia e mesmo a vontade ou os povos, avançam 


Caminhamos ciclicamente até um estágio; cria-se um 'ficcional'.





No minuto 1:10 podemos observar o Physarum, análogo cultural, a exercer sua tese. Quiséramos nós poder entender o que se passa em seu interior, e que tipos de ficcionais estariam a se produzir.

Observar o Physarum e o fascíneo dessa observação, diferente da imaginação, é ter identificado em nós mesmos um núcleo em comum, com um ser elementar. Tudo leva a crer que nosso interior, e o do Physarum quando assim observado, carrega algo como o cerne do conceito de nossa vontade e de toda essa dinâmica vital, uma forma ficcional.


A ciência é um ficcional. Assim como a religião e a ontologia. Não precisamos agora aludir aos motivos pelos quais ficcionais são criados e mantidos, mas ouvir atento em que consiste o ponto nodal de passagem para o ficcional. Tal passagem se verifica no momento mesmo em que a ciência adquiriu seus vultos recentes.

A física traçou um método, e sua felicidade foi imediatamente compreendida. A química, a biologia, a psicologia, a sociologia, cada qual cunhou um método e felicidades.


Esses são conjuntos que dificilmente se intercedem. Não há conhecimento algum sobre como comportamentos de certos objetos da física se manifestariam em conjunto, de modo biológico ou mesmo psicológico. Não há nenhuma regra física dedutível a esse ponto. E em nenhum nível é possível pensar uma teoria unificada como sonhava Einstein, ficcionalmente.


No momento em que a prática de um conhecimento está em andamento profícuo, no momento em que vemos uma felicidade, imitamos. Em sentido mais pueril possível - no sentido em que as crianças praticam, em borrões.

No momento em que se diz ‘ciência’, estamos aludindo (e não significando) nada mais do que isto: ‘movimento imitativo de algo profícuo’.

O seu significado, o simbólico da ciência é nada mais que: ‘a imagem de um fazer profícuo’.

Assim como a criança, a ciência, no momento em que se vê interrogada não pode esboçar qualquer reação que não seja imitar novamente ‘aqueles’ gestos, sem saber compreender ‘aqueles’ e ‘estes’.

A física é um método e só isto. ‘A ciência’ não é apenas um método, é a calda de um ficcional que impulsiona a constituições de métodos irreais: a identidade, semelhança e parentesco de coisas que inicialmente não se correspondem. 

Métodos quando profícuos são substantivados, ‘a física’, ‘a escultura’, ‘a educação’.

'A ciência' (a idéia de ciência) é a posteriori. É a isto que devemos atentar, a fixação de uma idéia é sempre dependente de algum sucesso, e este sucesso se liga à idéia de alguma coisa, e esta ao nosso Physarum interno, nosso ficcional. Temos uma felicidade. 

O que é profícuo encerra-se em si mesmo, e seu método segue uma história própria que não pode ser estendida. A idéia de ciência, quando quer englobar tudo - a ciência quer ser a totalidade das explicações - escamoteia a realidade dos métodos e o problema de suas relações. 


Todo ficcional se comporta ‘como se’ houvesse comida a encontrar, e o faz sem saber ou sem querer - está a fazer algo sem propósito. Tal beleza heróica de um ato ad terrorem continuará a encher nossos olhos. Mas a ciência ficcional necessita de um anti-ficcionalismo, pois mesmo Einstein deve compreender que uma teoria unificadora é um método, e que portanto, ou se trata de um golpe da física a aglutinar todos os assuntos sob seu método, ou, um novo método que não sendo nenhum dos métodos existentes não será física e tornará todos os restantes visões estanques daquilo que dali em diante encherá novamente nossos olhos.

Contudo, o ficcional cria também ficção. A ciência, a religião e a filosofia são métodos que pretendem produzir objetos que anulam a existência de seu método. Tais objetos, o objeto da natureza, o ideal e a fé são ficções, porque um objeto de um ficcional. Creio que muito já se fez com os ficcionais.


Iniciemos uma ciência não ficcional, por entender que não há ciência. O que existe de concreto são métodos.






sábado, 2 de julho de 2011

Vestigios x Prova

Uma célula neuronal. Localizada na região que, de costume, se liga a nervos musculares com o objetivo de promover movimento corporal, mas que porém, por ocasião de uma interação cérebro-máquina, julgou por si, ser sem propósito enviar dados para um músculo, pois percebia-se que em verdade ele não estava sendo requisitado. A célula optou portanto em processar dados para mover um braço mecânico distanciado e não acoplado ao resto de seu corpo onde o único contato que possuia era de uma imagem visual e não uma estrutura de próprio corpo.


Assim Nicolelis nos diz que o cérebro influencia a si mesmo, e se molda de acordo com suas próprias decisões neuronais. [Ontem em sua palestra].




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Antes, Maturana havia nos dito que "os seres humano se caracterizam por, literalmente, produzirem-se continuamente a si mesmos –  indicamos ao chamarmos a organização que os define de organização autopoiética." Isto está em seu livro, A árvore do conhecimento. A publicação é de 1987.

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Bachelard em 1928 nos diz que em um nível, o dado neuronal adentra mecanicamente, porém, depois, em um nível mental, uma intencionalidade toma conta e apropria para si os dados neurais e cria voluntariamente o conhecimento, interpreta o que é mecânico e se sobressai.


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"Quando as condições mudam a célula reage a novas excitações de maneira nova. Ela assimila; mas sua substância, em vez de permanecer idêntica a si, modifica-se." (Delbet, 1920)




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O que a ciência está a ficcionar é a objetividade. A objetividade é uma invenção da ciência que trouxe algum constrangimento para as ciências humanas, por um bom tempo, até que, invertendo a mesa, vimos que foi a ciência quem se esquivou da natureza da própria objetividade; era um produto da subjetividade.


A física mais sóbria de nosso tempo é obrigada a aceitar que o próprio instrumento modifica o objeto de estudo. Ora, não é exatemente isto que Nicolelis e Delbet viram no cérebro, e que Bachelard viu na consciência, e Maturana e Varela nos seres vivos?


 Vamos perceber o vulto da filosofia passando por aqui, vulto e não objeto, pois o objeto aqui é das ciências. A filosofia pôde mostrar que o instrumento primordial era a consciência e não o neurônio e não o sistema nervoso, e não a composição físico-química. Mas então, a determinação da consciência é modável na célula, ela mesma é parte da decisão, a mente decide porque a célula decide e não é sempre idêntica.


A explicação de Bachelard consegue fazer não apenas entender-se, mas, explicar. É justamente assim que se passa com o vulto filosófico, dispença qualquer prova.


O neurônio parece ser sempre um vestígio de pensamento, os dados digitais, e os sons destes neurônios continuam sendo vestígios, o corpo biológico, apenas vestígio… vestígio de ações humanas que passaram.


Reunimos vestígios em volume que gostaríamos de chamar de provas.


Mas somos essencialmente retóricos do mundo, mostramos um vestígio apenas para dar como prova aquilo que simplesmente decidimos por certo e verdadeiro, uma confabulação.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Decupagem, Nidação.


Na comunicação escrita. Não é bem visto o escritor que estipula, que dá o tom. Que interfira em qualquer prática ou hábito que é comum. Ao leitor. Mesmo anônimo, não se estipula andamento, não se põe em sua boca nosso ritmo. Não se deve explicar-lhe que em determinada passagem um ou outro afeto deva se destacar, tudo isso a que os músicos se acostumaram não é admitido pelo leitor.  

Nossa recomendação de lentidão certamente se tornará um enfadonho comando, impossível, um impertinente começo e um receito de prematuro fim. Porém, ao mesmo tempo há também uma filosofia, forte, inaudita e antiga, e também uma poeira qualquer. Um único caso. Onde verdade e filosofia podem conjurar.

Isso tudo foi uma frase de Aristóteles. Frase proferida contra a teoria de seu mestre. Sozinha, significou o fim da metafísica, mas porque inaudita, não marcou o fim da filosofia.


METAFISICA, Livro I - IX


"...julgando explicar a substância dos mesmos [sensíveis] admitimos, na realidade, a existência de outras substâncias. Mas como estas [substâncias], sejam as substâncias daquelas, explicamo-lo com palavras vãs, porque 'participar', como mais acima dissemos, nada significa."


Nossa total dedicação. Alguns censuram a voracidade autóptica, tão estranha aos gregos. Mas foi este o tom, o mesmo com que ainda hoje a modernidade desencanta, a procura por substâncias não duplicadas. Difícil e complicado de as encontrar.

A filosofia viu a morte do estagirita, e mostrou-se pouco interessada na tarefa, pois vende-se mais livros se significamos ainda mais o mito, e o mito da própria filosofia. Afastado disso tudo, a escrita Aristotélica inscrevia inaudita uma linguagem. Aristóteles estava, ao abandonar Platão, abandonado o pensamento analógico, e introduzindo o digital - a imagem do próprio pensamento não pode se igualar às imagens que o pensamento mesmo cria.

" a imagem do próprio pensamento não pode se igualar às imagens que o pensamento mesmo cria."

Um recado discreto em uma pequena sentença de uma filosofia antiga. Seguir o recado seria como se engajar em algo que viria a se chamar filosofia, mas que não se cumpria. Evitar justamente o que a filosofia que evita a metafísica se torna, uma inquirição metafísica.


                                                                        [- o processo mitose]


A meiose é o processo de divisão celular que consiste em produzir uma duplicação, da célula, carregando metades aleatórias das células que lhe deram origem. O ciclo metafísico em seus altos e baixos pareceu finalmente que teria fim com o empirismo, por mera sorte de um crossover. E novamente com a filosofia transcendental. E novamente com a fenomenologia. Mas o idealismo e a ontologia, por herança de genes ancestrais mantém o ciclo metafísico desperto. O material não se esgota, surge sempre em ciclos distribuídos ao sabor dos tempos.


A meiose não pode evitar o retorno do ancestral. E como podem observar falamos aqui de nascimento.


Dos Pais da Filosofia:

Ambos despatriados. A mãe renegada. O pai, sempre um rei próximo a morte que esforça-se ainda a encontrar "alguma coisa" antes que o filho venha.

O Pai descarta o feminino e a terra para sua descoberta é toda abstrata, e sua inseminação,
seu seminário, inicia por proclamar a filosofia toda sua.
    


METAFISICA, Livro I - II


"O mesmo sucede com o macho em relação à fêmea; esta é fecundada com uma única cópula, mas o macho fecunda várias fêmeas."

[Comentário ao modo como as Idéias de Platão participam das 'coisas']



O que fazia então a filosofia medieval, a filosofia idealista, a ontologia, senão tentar encontrar "alguma coisa" que mostrasse prova deste carimbo papal, do garanhão da forma universal, da própria concepção divina?

A filosofia parece querer encontrar "alguma coisa". Mas quem iria querer encontrar "alguma coisa" em uma teoria?

Duplicar idéias, e não se dedicar à agronomia de ver crescer, das condições do tempo, dos detalhes e distinções. 

Se pessoas sãs acreditassem no "ser das coisas" fumariam ópio a encontrá-las. E o que fazia Heidegger senão querer encontrar uma pedrinha escura e brilhante no interior do pensamento? A filosofia paterna se vê obrigada a postular objetos inalcansáveis os mais absurdos e vistosos que Deus. Ao fim, haviam desistido do mundo, e deram voz às palavras, deram voz a tudo que deveria correr inaudível.



METAFISICA, Livro I - IX



"Em geral, procurar os elementos dos seres sem os distinguir, apesar de serem múltiplas suas acepções, é impossibilitar-se de os encontrar, sobretudo se, desta forma, investigarmos de que [elementos] são constituídos"



Chegou muito tarde aquele filósofo que temia a fala do que não podemos falar, e temos que admitir isto: filósofos, não busquem duplicar o verbo do mundo pela teoria! Eles não sabem o que fazem e duplicam e dobram o mundo e a teoria faz escapar para o fundo, para a dobra, para o reverso, aquela pedrinha brilhante e escura, mas ela está lá, dizem, chacoalham seu papelão e afirmam estar nas desdobras o caminho.

A arte do falsário é prometer, do prestidigitador é camuflar. Tudo não passou de um truque, não chegam a 1001 noites e a água escorre novamente: quem mais vai querer fecundar as palavras?

 Um pouco antes, e com prudência, soemos o alarme...

         - A filosofia não tem objeto. Esta é a última distinção.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

 FRANK ZAPPA  E ensaio        filosófico: 

   O JOGO 
      
     de 
Ricardo            Nachmanowicz      DO 

      DESMEMBRAMENTO 

     [Lumpy Grave] 





A atitude de Duchamp ao colocar um mictório em exposição num museu poderia, não facilmente, inspirar uma estranha tentativa de um simples criador de animais do Zoológico, em sua intenção ainda primeva, expondo alguns macacos mortos. E isto, longe de ser um gosto pelo errado, converter-se-ia em uma grande admiração pelo descabido, por aquilo que não cabe, daquilo que não tem lugar. 

Entender o que cabe neste mundo e o que não cabe é uma simples tarefa, a de educação à mesa, mas quando senta-se à mesa um filho com penteados extravagantes o avô diz calmamente: “calma minha filha, está cabendo no mundo, neste mundo está cabendo”. O avô sabe, por experiência, que as coisas mudam de lugar. 

O banheiro fora uma casinha, só, e após muito tempo entrou para dentro das casas, os concertos eram realizados no jardim, onde se enterravam os mortos, que agora se afastaram a um cemitério particular, longe da cozinha e das salas de concerto, o jardim é apenas um lugar para se admirar.  

Este processo de distinções foi contínuo e podemos remetê-lo quase que universalmente a todo processo civilizatório, não identificado apenas ao processo ocidental, mas à tarefa cultural que o Humano se colocou. A diferenciação e a rejeição das ferramentas naturais, do alimento cru, da morada sob os atributos da geografia, sempre procedeu de um único modo: a separação. 

O divórcio é um imperativo científico, necessário, traz um bem e força uma contranaturalidade, esquecida na próxima geração, nada que o tempo não dê conta. Porém, em seu ato criativo, a separação que exigimos é uma dor, o mundo todo onde originariamente era o lugar da minha morada e alimentação, eu me separo dele, e sinto a perda, mas uma vantagem, minha exclusão do convívio com os outros bichos me fixou num lugar, e meu desejo é ambiguamente o de permanecer em casa. 

Quando tratamos de um “lugar cultural”, de um produto artístico, temos que transpor o campo da necessidade, da comodidade e da fisiologia para o da percepção, do agradável, da identificação, da técnica. A pergunta que quero fazer é: De que forma, dentro da arte, mudamos os móveis de lugar? 

Sim, na música, certo processo social, estético, perceptivo e analítico vem ao longo da história distinguindo suas próprias funções, ou criando mesmo a categoria de função social, ou função espiritual, ou religiosa, ou mesmo, funções estéticas, ou função alguma. Porém, quem é o executante destas distinções, quem decide quem fica e quem vai? Fiquemos por enquanto com a história. 

Uma certa percepção que antes se incubiu de distinguir o comer do dormir, pois que poderia ter sido entendido enquanto processos causais e seqüência necessária, se encarregou de separá-los em ambientes diversos, atestando o seu compromisso com a história. Esta percepção e esta nova distinção é documentada e materializada em forma de cômodos e inserindo na sociedade em forma de casa. As vezes sendo contrariada, pois a distinção entre festas musicais e enterros pode ser abolida propositadamente se os parentes se reunirem para "beber o defunto", estende-se o cadáver sobre a mesa da cozinha, e confraterniza-se até a hora de seu sepultamento. Trata-se de uma festa extravagante, onde uma dor profunda autoriza a dessacralização de toda a vida mesmo. 

A percepção musical, em sua história, fez suas escolhas e nomeou cada uma delas quando se distinguiam: ópera, cantata, sonata, samba, erudita, instrumental, escala maior, etc. Ou classes de diferenças: cânone, contraponto, fuga e serialismo. Distinguimos entre música de elevador, música de ambulância e música de ginástica, música barroca, clássica ou romântica, o interesse de ouvir música se diferenciou e cada interesse pegou para si um nome próprio. 

No entanto, o fato do banheiro ter se distanciado dos museus não configura problema algum, mas pode vir a ser um problema o fato de aquilo que foi matéria dos museus possa estar entulhado e trancafiado em um banheirinho, pois não há muita regra para estas distinções, ou, há regras demais envolvidas. 

Frank Zappa parece ser o rei do entulho, a distinção musical parece ser o seu assunto e a primeira impressão que temos de Lumpy Gravy é a de um completo devaneio desgostoso. Aquele que possui alguma predileção musical se sente traído pois certamente se identificará com um trecho que logo será interrompido bruscamente causando dúvidas sobre a real integridade da obra, ou da moral do compositor.  

Quando os estilos estão todos bem definidos, o ouvinte se põe à tarefa de reconhecê-los e Frank Zappa dispõe todos em sua bandeja, um rock de garagem de péssima qualidade, um complexo jogo timbrístico e rítmico, seguido por sons eletroacústicos pueris e concluindo em um tape de solo de guitarra colocado em velocidade rápida. A quantidade de objetos é tal que aquela tarefa de reconhecer os estilos se torna ineficiente, surge uma ansiedade sobre o destino da obra e a mera identificação do estilo não pode perfazer o conteúdo musical, se o ouvinte desiste destas tarefas se perde em sensações desconexas, que é o gosto de alguns. Não quero aqui me ater em “debates”, estou querendo apontar para uma característica da música de FZ, para um dado sensível, sua inquietação não se trata de mera especulação. 


Neste ponto o conteúdo musical se coloca em questão, pois, uma música que se propriamente estar acabada, como uma grande obra artística é capaz, ela quer expor certas questões acerca do conteúdo, há sim um argumento cético, é discorrido todas as possibilidades do assunto, e no final postula-se a impossibilidade... do conhecimento absoluto, ou, da música pura.  

Bordões sonoros significando não mais que exatamente o seu próprio preconceito, utilização de técnicas “contemporâneas” a extrair um conteúdo “romântico”, ou a supervalorização de um trecho e ao mesmo tempo a introdução de timbres com um tom de deboche, tudo é dissimulado e nisto consiste o contrário do alienado. A demonstração do domínio técnico e conceptual do elemento musical coadunam a força de seu experimento cético e nos conduz a um questionamento sobre a unidade da obra musical, de um fenômeno restrito à partitura ou circunspecto pela sociedade, pelos costumes, pela história.  

A respeito da unidade da obra, por mais inegável obviedade, é este um assunto que os “grandes compositores” tomam para si, fazer o material refrear e multiplicar-se como um ser só, o adjetivo original, remetendo-se à origem. Esta obra original, esquecida e vaporizada no tempo, guardada e esfacelada em guetos de memória, é desta grande obra que FZ retira a matéria, intenção e conteúdo a transformá-los em entulho, tentando deixar a grande obra cair em contradição, duvidando de sua unidade, mesmo que acatando esta tarefa, de uma “obra”, sua aceitação como tal se dá simplesmente por se tratar de mais uma distinção feita pelo ouvido ou por outras relações estabelecidas. Mas duvidar da unidade só foi possível porque Lumpy Grave não se colocou como grande obra, é uma obra que traz questões musicais com polaridade invertida, mas esta é uma distinção específica de sua música. 

Aqui devemos saber o que é Lumpy Grave. Foi o quarto disco lançado por Frank Zappa, em 1968, e o primeiro projeto solo de FZ sem nenhuma banda de apoio. Zappa descreveu este disco como: “a curiously inconsistent piece, which started out to beBALLET, but probably didn't make it." É apesar de tudo uma obra orquestral, porém entrelaçada com antigas gravações e diálogos non-sense, entre outros diversos materiais e técnicas, principalmente ligados à musica concreta. Este álbum é comumente lido pela crítica como uma exêntrica mistura entre elementos eruditos e vulgares, ou seja, não poderia se enquadrar na tendência do final da década de 60 daquele século, de se procurar uma fusão comercial entre os elementos do jazz, rock, e técnicas eruditas de composição. 

 O que resulta desta desconstrução da forma? Desta hábil percepção da música de Stravinsky? 

Resulta a desconstrução da distinção atual da escuta, de um projeto que veio a tona a partir da metade do século XX e que se vê hoje em dia plenamente realizado enquanto Indústria Cultural. Uma projeção não linear, não apenas de um passado da música, mas de um passado da própria escuta, onde ela era capaz de fazer uma sinfonia completa, que, passando pelos urros do animal desafiador, ao som da lâmina, do vento nas folhagens, do som dos comuns, da música festiva, e encerrando-se com o uivo distante e o som calmo do coração na hora do descanso. Uma audição única e constante, um significado que é capaz de transpor materiais, conceitos e situações, porque somente musical. 



A distinção entre tantos estilos, trazidos pela industria fonográfica, categorizou a escuta e uniu um ethos, um pathos e uma cultura em um único e singelo momento, num single, em um LP. E neste contexto, trair a “categoria” perceptiva é abrir o sentido musical, neste ponto também a obra original está categorizada, mesmo a contra-gosto. 

Obviamente com tantas referencias musicais sendo citadas e para possibilitar que as tenhamos como meras citações, Lumpy G. incorre/recorre a superficialidades, a fazer rápidas exposições, não haver desenvolvimento, colagem, e assim, justamente assim FZ consegue seduzir o ouvinte à escuta de uma grande obra. As distinções devem ser contra-feitas. 

Resumindo as questões aqui impostas, Lumpy Grave quer que tanto o ouvinte leigo como o profissional adquira uma postura radical ao se escutar música, pelo simples e improvável caminho de ouvi-la, significá-la, sem se entregar a ansiedade de um single. 
FZ estabelece um tipo de diálogo musical que parece flertar com o conceptual. De toda forma, seu material musical contém os problemas que tentou resolver: a forma “diálogo” poderia perfazer um estilo, concretizar uma distinção?  


Ah, e a respeito do criador do Zoológico do primeiro parágrafo, não sei falar mais sobre ele. 



   
                        “... porque algumas coisas são entediantes.”