segunda-feira, 13 de junho de 2011

 FRANK ZAPPA  E ensaio        filosófico: 

   O JOGO 
      
     de 
Ricardo            Nachmanowicz      DO 

      DESMEMBRAMENTO 

     [Lumpy Grave] 





A atitude de Duchamp ao colocar um mictório em exposição num museu poderia, não facilmente, inspirar uma estranha tentativa de um simples criador de animais do Zoológico, em sua intenção ainda primeva, expondo alguns macacos mortos. E isto, longe de ser um gosto pelo errado, converter-se-ia em uma grande admiração pelo descabido, por aquilo que não cabe, daquilo que não tem lugar. 

Entender o que cabe neste mundo e o que não cabe é uma simples tarefa, a de educação à mesa, mas quando senta-se à mesa um filho com penteados extravagantes o avô diz calmamente: “calma minha filha, está cabendo no mundo, neste mundo está cabendo”. O avô sabe, por experiência, que as coisas mudam de lugar. 

O banheiro fora uma casinha, só, e após muito tempo entrou para dentro das casas, os concertos eram realizados no jardim, onde se enterravam os mortos, que agora se afastaram a um cemitério particular, longe da cozinha e das salas de concerto, o jardim é apenas um lugar para se admirar.  

Este processo de distinções foi contínuo e podemos remetê-lo quase que universalmente a todo processo civilizatório, não identificado apenas ao processo ocidental, mas à tarefa cultural que o Humano se colocou. A diferenciação e a rejeição das ferramentas naturais, do alimento cru, da morada sob os atributos da geografia, sempre procedeu de um único modo: a separação. 

O divórcio é um imperativo científico, necessário, traz um bem e força uma contranaturalidade, esquecida na próxima geração, nada que o tempo não dê conta. Porém, em seu ato criativo, a separação que exigimos é uma dor, o mundo todo onde originariamente era o lugar da minha morada e alimentação, eu me separo dele, e sinto a perda, mas uma vantagem, minha exclusão do convívio com os outros bichos me fixou num lugar, e meu desejo é ambiguamente o de permanecer em casa. 

Quando tratamos de um “lugar cultural”, de um produto artístico, temos que transpor o campo da necessidade, da comodidade e da fisiologia para o da percepção, do agradável, da identificação, da técnica. A pergunta que quero fazer é: De que forma, dentro da arte, mudamos os móveis de lugar? 

Sim, na música, certo processo social, estético, perceptivo e analítico vem ao longo da história distinguindo suas próprias funções, ou criando mesmo a categoria de função social, ou função espiritual, ou religiosa, ou mesmo, funções estéticas, ou função alguma. Porém, quem é o executante destas distinções, quem decide quem fica e quem vai? Fiquemos por enquanto com a história. 

Uma certa percepção que antes se incubiu de distinguir o comer do dormir, pois que poderia ter sido entendido enquanto processos causais e seqüência necessária, se encarregou de separá-los em ambientes diversos, atestando o seu compromisso com a história. Esta percepção e esta nova distinção é documentada e materializada em forma de cômodos e inserindo na sociedade em forma de casa. As vezes sendo contrariada, pois a distinção entre festas musicais e enterros pode ser abolida propositadamente se os parentes se reunirem para "beber o defunto", estende-se o cadáver sobre a mesa da cozinha, e confraterniza-se até a hora de seu sepultamento. Trata-se de uma festa extravagante, onde uma dor profunda autoriza a dessacralização de toda a vida mesmo. 

A percepção musical, em sua história, fez suas escolhas e nomeou cada uma delas quando se distinguiam: ópera, cantata, sonata, samba, erudita, instrumental, escala maior, etc. Ou classes de diferenças: cânone, contraponto, fuga e serialismo. Distinguimos entre música de elevador, música de ambulância e música de ginástica, música barroca, clássica ou romântica, o interesse de ouvir música se diferenciou e cada interesse pegou para si um nome próprio. 

No entanto, o fato do banheiro ter se distanciado dos museus não configura problema algum, mas pode vir a ser um problema o fato de aquilo que foi matéria dos museus possa estar entulhado e trancafiado em um banheirinho, pois não há muita regra para estas distinções, ou, há regras demais envolvidas. 

Frank Zappa parece ser o rei do entulho, a distinção musical parece ser o seu assunto e a primeira impressão que temos de Lumpy Gravy é a de um completo devaneio desgostoso. Aquele que possui alguma predileção musical se sente traído pois certamente se identificará com um trecho que logo será interrompido bruscamente causando dúvidas sobre a real integridade da obra, ou da moral do compositor.  

Quando os estilos estão todos bem definidos, o ouvinte se põe à tarefa de reconhecê-los e Frank Zappa dispõe todos em sua bandeja, um rock de garagem de péssima qualidade, um complexo jogo timbrístico e rítmico, seguido por sons eletroacústicos pueris e concluindo em um tape de solo de guitarra colocado em velocidade rápida. A quantidade de objetos é tal que aquela tarefa de reconhecer os estilos se torna ineficiente, surge uma ansiedade sobre o destino da obra e a mera identificação do estilo não pode perfazer o conteúdo musical, se o ouvinte desiste destas tarefas se perde em sensações desconexas, que é o gosto de alguns. Não quero aqui me ater em “debates”, estou querendo apontar para uma característica da música de FZ, para um dado sensível, sua inquietação não se trata de mera especulação. 


Neste ponto o conteúdo musical se coloca em questão, pois, uma música que se propriamente estar acabada, como uma grande obra artística é capaz, ela quer expor certas questões acerca do conteúdo, há sim um argumento cético, é discorrido todas as possibilidades do assunto, e no final postula-se a impossibilidade... do conhecimento absoluto, ou, da música pura.  

Bordões sonoros significando não mais que exatamente o seu próprio preconceito, utilização de técnicas “contemporâneas” a extrair um conteúdo “romântico”, ou a supervalorização de um trecho e ao mesmo tempo a introdução de timbres com um tom de deboche, tudo é dissimulado e nisto consiste o contrário do alienado. A demonstração do domínio técnico e conceptual do elemento musical coadunam a força de seu experimento cético e nos conduz a um questionamento sobre a unidade da obra musical, de um fenômeno restrito à partitura ou circunspecto pela sociedade, pelos costumes, pela história.  

A respeito da unidade da obra, por mais inegável obviedade, é este um assunto que os “grandes compositores” tomam para si, fazer o material refrear e multiplicar-se como um ser só, o adjetivo original, remetendo-se à origem. Esta obra original, esquecida e vaporizada no tempo, guardada e esfacelada em guetos de memória, é desta grande obra que FZ retira a matéria, intenção e conteúdo a transformá-los em entulho, tentando deixar a grande obra cair em contradição, duvidando de sua unidade, mesmo que acatando esta tarefa, de uma “obra”, sua aceitação como tal se dá simplesmente por se tratar de mais uma distinção feita pelo ouvido ou por outras relações estabelecidas. Mas duvidar da unidade só foi possível porque Lumpy Grave não se colocou como grande obra, é uma obra que traz questões musicais com polaridade invertida, mas esta é uma distinção específica de sua música. 

Aqui devemos saber o que é Lumpy Grave. Foi o quarto disco lançado por Frank Zappa, em 1968, e o primeiro projeto solo de FZ sem nenhuma banda de apoio. Zappa descreveu este disco como: “a curiously inconsistent piece, which started out to beBALLET, but probably didn't make it." É apesar de tudo uma obra orquestral, porém entrelaçada com antigas gravações e diálogos non-sense, entre outros diversos materiais e técnicas, principalmente ligados à musica concreta. Este álbum é comumente lido pela crítica como uma exêntrica mistura entre elementos eruditos e vulgares, ou seja, não poderia se enquadrar na tendência do final da década de 60 daquele século, de se procurar uma fusão comercial entre os elementos do jazz, rock, e técnicas eruditas de composição. 

 O que resulta desta desconstrução da forma? Desta hábil percepção da música de Stravinsky? 

Resulta a desconstrução da distinção atual da escuta, de um projeto que veio a tona a partir da metade do século XX e que se vê hoje em dia plenamente realizado enquanto Indústria Cultural. Uma projeção não linear, não apenas de um passado da música, mas de um passado da própria escuta, onde ela era capaz de fazer uma sinfonia completa, que, passando pelos urros do animal desafiador, ao som da lâmina, do vento nas folhagens, do som dos comuns, da música festiva, e encerrando-se com o uivo distante e o som calmo do coração na hora do descanso. Uma audição única e constante, um significado que é capaz de transpor materiais, conceitos e situações, porque somente musical. 



A distinção entre tantos estilos, trazidos pela industria fonográfica, categorizou a escuta e uniu um ethos, um pathos e uma cultura em um único e singelo momento, num single, em um LP. E neste contexto, trair a “categoria” perceptiva é abrir o sentido musical, neste ponto também a obra original está categorizada, mesmo a contra-gosto. 

Obviamente com tantas referencias musicais sendo citadas e para possibilitar que as tenhamos como meras citações, Lumpy G. incorre/recorre a superficialidades, a fazer rápidas exposições, não haver desenvolvimento, colagem, e assim, justamente assim FZ consegue seduzir o ouvinte à escuta de uma grande obra. As distinções devem ser contra-feitas. 

Resumindo as questões aqui impostas, Lumpy Grave quer que tanto o ouvinte leigo como o profissional adquira uma postura radical ao se escutar música, pelo simples e improvável caminho de ouvi-la, significá-la, sem se entregar a ansiedade de um single. 
FZ estabelece um tipo de diálogo musical que parece flertar com o conceptual. De toda forma, seu material musical contém os problemas que tentou resolver: a forma “diálogo” poderia perfazer um estilo, concretizar uma distinção?  


Ah, e a respeito do criador do Zoológico do primeiro parágrafo, não sei falar mais sobre ele. 



   
                        “... porque algumas coisas são entediantes.” 
  

Sem comentários:

Enviar um comentário